A cinéfila


Carina Mendes

Saltou do táxi e checou o celular. Onde era mesmo o café? Dentro de um centro de arte, ele havia escrito. Correu o olhar pela praça até avistar o local, uma fachada bege. Três portas de madeira esculpidas com apuro indicavam o acesso. Entrou.
O ambiente tinha uma certa solenidade. Uma música suave preenchia o hall e o café se localizava na lateral, fora das vistas de quem passava na rua. Pensou que o centro da cidade tem desses locais que permitem encontros sugestivos e reservados.
Reparou que ele ainda não havia chegado e achou a roupa um excesso ou uma escassez, considerando o ambiente e os usuários. Puxou a minissaia para baixo, aproximou-se do garçom, solicitou uma mesa para dois e na sequência fez o pedido.
Alguns minutos depois chegou seu cappuccino com borda de chocolate. Não costumava exagerar em calorias, mas queria mostrar-se faminta, talvez. Ao primeiro gole, Vitor apareceu na porta. Corpo enxuto em paletó sob medida, cabelos despreocupados, envolto numa névoa marítima. Teve o ímpeto de levantar, mas se manteve distraída, como que desnutrida de expectativas. Ele quis surpreendê-la e se aproximou por trás.
— Que delícia esse chocolate — ele sussurrou ao pé do ouvido.
— Quanto tempo, querido! — respondeu em sobressalto, ensaiando surpresa, e o abraçou.
A saudação durou mais que o tempo protocolar. Ao se afastarem, Vitor passou o polegar pelo canto de sua boca, retirando o excesso de chocolate, e a olhou de cima a baixo.
— Você está uma gata, hein? Aliás, como sempre.
— E você? — retribuiu o olhar — Vi que continua surfando, apesar desse ar sério que tenta passar — riram juntos.
Ela tornou a se sentar e ele se acomodou na cadeira da frente, apoiando sua pasta na que estava vazia. O tamanho da mesa permitia sentir os perfumes e travar uma conversa estreita. Vitor pegou o cardápio, passou as mãos pelos cabelos e fingiu escolher uma cerveja pela leitura. Fez o pedido ao garçom e mirou persistente nos olhos dela com o semblante de quem resolveria questões naquele encontro.
— Como estão as coisas? — Ela se adiantou na pergunta.
— Nem me fale, Laura. Ando meio atordoado.
— Por quê? — tornou a perguntar, dando outro gole em seu cappuccino.
— Tenho pensado muito numa pessoa — falou sussurrando, como se só ela devesse ouvir.
De imediato, Laura pensou nos dois juntos, como quem repassa um filme erótico, em que a ação vale mais do que a história. Mas com cenas em preto e branco, posto que descoloridas pelo tempo. Os corpos, os beijos, a praia, o cinema, a cama. E então, como um comercial que interrompe a melhor parte do filme, veio à sua mente as imagens de Vitor e sua família feliz; o pai satisfeito, a mulher perfeita, os filhos pródigos, e todos os adjetivos insossos de postagens pasteurizadas do Instagram.
Apesar disso, ela sentiu certa satisfação de confirmar o intuito daquele encontro, já desconfiava que ninguém podia ser feliz naquele tom superlativo. Há tempo que desenvolvia uma tese pessoal, baseada na observação, de que as pessoas mostravam nas redes sociais o inverso daquilo que sentiam. Era como um filme fotográfico, olhamos a imagem em negativo; as cores estão invertidas.
— Talvez você possa me ajudar — disse Vitor interrompendo o fluxo de pensamentos de Laura e dando um gole na cerveja.
Ela entendeu que era chegada a sua hora. Sabia que ele não tardaria a perceber. Manteve-se a todo momento, no limiar. Foi atriz e espectadora, dependendo do seu humor. Sempre ali, disponível. Sempre ali, sem voz própria que pudesse definir aquela relação. Contentando-se em tê-lo nas entrelinhas de enredos mais elaborados. O que o fizera se encher de coragem?, pensou.
— Como posso te ajudar, meu lindo? — perguntou lambendo a borda de chocolate e mirando-o com olhos de desejo.
Aquele café às escondidas seria o cenário para a grande revelação, pensou Laura. A confirmação de um típico enredo de comédia romântica, no qual o protagonista casa com outra, constitui família, passa um tempo crendo ser feliz, até que se dá conta de que deveria ter casado com sua amiga. Amizade colorida transformada em amor dicromático.
— Preciso que entregue isso para a Ana — disse Vitor, passando para ela uma pequena caixa de veludo vermelho.
— Oi? — interjecionou, assimilando aquele plot twist, e pegou a caixa como quem pega um objeto mofado.
— Ela não responde mais minhas mensagens — explicou.

A Ana... Passou então um filme de drama pela mente de Laura, só que mudo, silenciado pelo desgosto. Vitor e Ana, em certa festa, juntos. Fingiu não se importar. Fingiu concordar com aquele enredo desarticulado e intermitente. Procurou entender a opção de Vitor naquela festa, e em tantas outras que se seguiram. Em programas de turma que se tornaram programas de casal, ele e a outra.

— Mas a Ana tá casada, Vitor.
— Eu também — respondeu, levantando os ombros e dando outro gole na cerveja.
— Tem certeza de que essa é a sua melhor opção? — Como poderia preferir a Ana, casada, com filhos, e sem vida de Instagram?, pensou.
— Preciso tentar, Laura. Não estou feliz. Sou novo ainda, não posso me encarcerar num relacionamento para o resto da vida, né?
— Achei que fosse feliz — pontuou tomando seu cappuccino já sem chocolate.
— As postagens do Instagram são ilusórias, Laura. São como cenas de um filme de fantasia, mundos imaginários. Todo mundo sabe. Além disso, minha esposa já anda desconfiada da minha infelicidade, que ela confunde com infidelidade. Fuça minhas coisas diariamente e acha que não sei. Procura descuidos em minha pasta, bolsos, mensagens de celular. Já até desconfiou que eu tinha alguma coisa com você, acredita?
— Imagina — riram juntos, mas em intensidades diferentes. — E o que tem dentro da caixa? — continuou Laura.
— Um anel.
Não podia acreditar. Era um convite para Ana largar o marido e ficar com ele, como em filmes românticos, quando só o que importa é a felicidade do casal. Os personagens periféricos acabam aceitando suas condições de obstáculo e livram o caminho para o enlace do par perfeito, para a certeza do amor verdadeiro.
— Agora, só vou largar minha família se ela aceitar ficar comigo, Laura. Não quero ficar solteiro à toa, por aí. Imagina, ter que sair pra conhecer gente nova, dançar, conversar com desconhecidas, fingir interesse. Credo! Ou pior, ter que partir para o Tinder, dar match, essas coisas que nem entendo como funcionam.
— Não é um pouco egoísta essa forma de pensar?
— Prefiro pensar que Carla é meu segundo grande amor. É porque você não sabe como é casamento, Laura. Foi esperta. Resolveu ficar só na gandaia. Aliás, como estão os namoricos? — perguntou, simulando interesse.
— Estão ótimos. Na verdade tenho saído firme com um cara muito interessante — respondeu, titubeando.
— Ah, que isso, você é do mundo. Espírito livre. Se firmar com alguém, vai ter muito cara saudoso por aí — riu novamente procurando encerrar o assunto — Mas e a encomenda? Você entrega pra ela?
— Claro — respondeu, ajeitando sua postura no encosto.
Em seguida, colocou a caixa de veludo na bolsa, ergueu a cabeça e cruzou as pernas com ar de femme fatale.
— Show, Laura, nem sei como te agradecer. Agora preciso ir, tô muito atolado de trabalho. Você se importa?
— Claro que não — respondeu finalizando seu cappuccino.
— A conta — disse Vitor virando-se para o garçom e pegando o celular.
No entretempo, trocaram ainda algumas palavras, Vitor deu os últimos goles na cerveja e cada um passou o seu cartão.
— Preciso dar uma mijada rápida, me espera aí na mesa mesmo, eu volto e a gente vai. — Vitor se levantou e se dirigiu ao toalete.
Assim que ele saiu de seu campo de visão, Laura descruzou as pernas e pousou as mãos sobre as coxas, deixando-as subir imperceptíveis por baixo da minissaia. Com os dedos, alcançou as alças laterais da calcinha que havia escolhido para aquele encontro e puxou, inclinando-se até o chão como se resgatasse um objeto caído. Passou as alças por baixo do salto alto, um de cada vez, e embolou, com pouca dificuldade, a calcinha em uma das mãos. Apoiando os braços sobre a mesa, deixou a mão cerrada seguir em direção à pasta. No bolso lateral, depositou a lembrança daquele encontro.
Vitor voltou na pressa, já pegando a pasta. Laura se levantou, ajustou a minissaia e pegou sua bolsa no espaldar da cadeira. Lado a lado, mas em ritmos diferentes, caminharam em direção à saída. A música ficou soturna?, pensou Laura. Na porta de madeira, se despediram com um abraço formal e promessas de outro encontro mais demorado.
— Quero saber mais de você, hein? — disse Vitor já virando na direção do trabalho com a pasta sobre a cabeça para se proteger da chuva que começara a cair.
Laura seguiu pela praça, na direção contrária, até a rua seguinte. Parou e pegou um cigarro na bolsa. O cenário ficou preto e branco, com gradientes de cinza. Sua sombra projetada no asfalto lhe pareceu fictícia. Deu três tragos no cigarro e observou que a fumaça se fundia com a chuva, como um prenúncio. Abriu novamente a bolsa, pegou o celular para chamar o táxi. No movimento, permitiu que a caixa de veludo caísse na sarjeta; a corrente d’água a guiou até o bueiro. Como num filme noir.

voltar

Carina Mendes

E-mail: mendes.carina@gmail.com

Clique aqui para seguir este escritor


Site desenvolvido pela Editora Metamorfose