Tentação


Carina Mendes

Ela desliza seus dedos em mim, mas hesita. A hesitação tem a ver com o último sábado, no restaurante, o encontro com o Heitor. Se eu tivesse escolha não estaria lá, pois tive que assistir a toda sua decepção com o rompimento do romance pré-maturo. Mariana é dada a essas paixonites agudas, às quais se entrega como se fosse capaz de apagar todas as decepções anteriores. Pela constância do contato, ela imaginou que com Heitor fosse pra valer. Dava pra sentir essa sua expectativa ao me tocar, na persistência do seu olhar em mim. Havia algo que acenava para uma história duradoura que se rompeu no sábado.

Agora ela me ignora como se eu fosse o culpado pela sua agonia. Coloca sua lista de músicas favorita e se dedica a lavar louça, num enxagua e ensaboa descuidado, mantendo-se de costas para mim. Ao colocar os primeiros pratos no escorredor, a melodia que segue provavelmente a faz lembrar de Heitor, pois ela seca a mão no pano de prato e a leva ao rosto como se secasse lágrimas. Percebo que quer se virar, me espia de canto de olho, mas recua e retoma a tarefa, distraída. Ensaboa os copos e um deles escorrega e cai na pia, denunciando o vagar de seus pensamentos. O barulho, entretanto, parece alertá-la e Mariana vem decidida em minha direção. Sua mão paira sobre mim e mais uma vez recua, e então resolve sentar-se ao meu lado no sofá. A proximidade agora escancara a tentação, sinto que não vai resistir. Nossa relação é tóxica, Mari, pode vir, penso. Ela então não se segura, me pega, desliza seus dedos sobre mim, abre o aplicativo de mensagens e digita: “Heitor, precisamos conversar”.

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Carina Mendes

E-mail: mendes.carina@gmail.com

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