Epifania


Carina Mendes

Uma amizade pode virar desejo numa fração de segundos. É como acionar um maçarico falho, que produz faíscas inúteis, mas que em algum momento acende a chama. O mistério é entender quando isso acontece e por quê. Talvez um excesso de proximidade faça embaçar a amizade, confundir afeto com desejo, distorcer julgamentos, colocar ciúmes onde antes havia fraternidade.

Os quatro amigos eram inseparáveis, mas de princípio era Capitu a amiga de Sancha e Bentinho o de Escobar. Quis o destino que formassem dois pares harmoniosos, perfeitos, feitos um para o outro. A amizade dobrada, de dois pares, transformou-se na união de quatro almas, intensificou as vivências, reforçou os laços, multiplicou aquela vontade de estarem juntos.

Certo dia, num desses encontros na casa de Sancha e Escobar, no bairro do Flamengo, o quarteto passava uma tarde agradável, dessas de longas conversas e jogos de baralho. Capitu perambulava pela sala muito segura de si, rindo, falando, mas seu olhar atento vasculhava o recinto como se procurasse uma falha naquela perfeição, uma faísca. Foi quando percebeu Sancha e Bentinho junto à janela, a admirarem o mar revoltoso da baía. As ondas batiam forte na mureta da orla, a espuma revolvia em si, produzindo mais espuma. E a maresia, ela envolvia a casa: uma névoa de pequeníssimas partículas salgadas que se depositavam nos móveis, nos objetos e nas pessoas. Capitu as percebeu de forma densa, como uma massa opaca que pode burlar os sentidos.

Mantendo a atenção no marido e na amiga junto à janela, de repente notou os gestos trocados entre os dois. Após alguns instantes de conversa, as bocas pararam de se mexer e os olhares se demoraram um no outro, compenetrados, fixos . Eram olhares desnudos, cheios de intimidade, trocados pela certeza de não estarem sendo vistos. Foi quando ocorreu a Capitu um entendimento profundo do que se passava. Como pôde não reparar nisso antes? Que novo elemento, naquele evento tantas vezes repetido, de encontros amistosos entre casais, a fez desvelar esse segredo trancado num baú e enterrado numa ilha deserta? Uma vertigem a fez sentar no canapé, próximo ao piano. Colocou a mão no peito e puxou o ar carregado de maresia e desconfiança.

Passados alguns instantes, observou Sancha sair da janela e se posicionar junto ao piano. Os olhares tornaram a se encontrar, teimosos. Retiveram-se demasiado, nenhum tinha a intenção de ceder. Capitu sentiu as chamas atravessarem a sala e se misturarem à maresia, que materializava as cenas de paixão montadas em sua mente. Cenas tão tórridas que ruborizou, não sabe se por vergonha ou raiva. Não imaginara jamais que Bentinho fosse dado a tamanha sem-vergonhice. Ocorreu-lhe uma ideia de vingança. Dissipou-a.

No resto da noite, tentou travar conversa com Escobar, mas não deteve atenção. As palavras voavam soltas, algumas formulavam questões que esperavam respostas fartas, às quais ela retribuía em monossílabos. Procurava, sim, responder às perguntas que sua mente elaborava de forma livre, como numa catarse, e formavam um redemoinho de interrogações na sua cabeça.

Na despedida, Capitu notou novamente os olhares: falados, francos, que diziam “quero você”. E agora via o aperto de mão, espremido, os dedos entrelaçados, cheios de desejos, de pecados, um gesto mediado pelo diabo. Era um sinal da faísca que tornaria a virar chama no próximo encontro a sós, assim como virara tantas vezes antes. Desde quando?

Capitu retornou para casa caminhando com Bentinho, prima Justina e José Dias. Agradeceu estar com mais companhias, assim podia evitar o marido. Ao chegarem em casa, Bentinho foi para seu gabinete. Certamente havia culpa em suas atitudes e fora colocar a cabeça no lugar, conforme pensou Capitu. Ela achou melhor, entretanto, assim pôde ficar no quarto sozinha, repassando a noite, as cenas, os olhos, o aperto de mão, como um disco arranhado.

Não conseguiu dormir. Revirou-se na cama a madrugada inteira. Pensou que era seu dever contar a Escobar sua descoberta. Lembrou que o amigo tem como hábito nadar de manhã cedo na praia do Flamengo, e de mencionar, na noite anterior, que não se intimidaria no dia seguinte pela ressaca. Nadava bem, tinha pulmões fortes e braços robustos, dignos de serem apalpados.

Aos primeiros raios da manhã, Capitu se levantou e se arrumou às pressas, antes do despertar de Bentinho. A mesa do café já estava posta, mas passou direto por ela, alcançando a porta. Andou como se quisesse correr, contendo a pressa no comportamento esperado para uma mulher de seu tempo. Chegou junto à mureta da orla e viu na areia Escobar se preparando para a atividade matutina. O mar batia revoltoso, a névoa da maresia persistia, pesada como chumbo.

Tirou os sapatos e desceu as escadas. Caminhou sobre a areia, chamando por Escobar. O amigo se virou para ela e ficou esperando a sua aproximação com expressão de dúvida. O que vinha a ter com ele a amiga a essas horas da manhã?, pensou. Capitu chegou ofegante, demonstrando o cansaço da sua urgência. Por um pequeno desequilíbrio, apoiou suas mãos nos braços de nadador de Escobar. Faísca. Escobar, por sua vez, olhou nos olhos de Capitu e viu a ressaca do mar neles refletida. Faísca.

E naquela manhã, uma chama. Escobar, ao invés de ser tragado pela ressaca do mar, foi tragado pelos olhos de Capitu.

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Carina Mendes

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